Um grupo de pesquisa da Faculdade de Farmácia da UFBA envolveu-se em uma árdua tarefa: o desenvolvimento de novos fármacos para doenças tropicais negligenciadas, como leishmaniose, doença de chagas e esquistossomose. Elas são assim denominadas porque ocorrem com mais frequência em países subdesenvolvidos na região dos trópicos e não há investimento por parte da indústria farmacêutica em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos contra essas doenças.
“Parte dos fármacos disponíveis foram desenvolvidos nas décadas de 1940 e 1950. Entre eles, alguns foram desenvolvidos na Segunda Guerra Mundial pelos nazistas. Hitler tinha planos de invadir a Europa pela África, continente em que essas doenças eram muito frequentes. Se os soldados fossem contaminados, eles não conseguiriam chegar no front de batalha com condições de combater. De lá para cá, muito pouco foi feito e a maioria das pesquisas pré-clínicas relacionadas a essa temática é desenvolvida nas universidades”, explica o coordenador do grupo de Avaliação e Planejamento de Moléculas Bioativas e professor da Faculdade de Fármacia, Marcelo Santos Castilho.
Esse grupo desenvolve seus trabalhos no Laboratório de Cristalização de Macromoléculas (LaCriMa) e no Laboratório de Bioinformática e Modelagem Molecular (LaBiMM), e neles a principal linha de pesquisa está voltada às fases iniciais de planejamento de fármacos contra doenças tropicais negligenciadas, ou seja, à identificação de moléculas bioativas que podem ser úteis, no futuro, para o desenvolvimento de novos medicamentos.
A estratégia utilizada pelo grupo é simples: ele procura identificar as enzimas responsáveis pelos processos bioquímicos essenciais ao parasita e bloqueá-las com produtos de origem sintética ou natural. É necessário escolher uma molécula que atue no parasita, mas não no hospedeiro e, para isso, os pesquisadores exploram diferenças evolutivas entre esses organismos. Atualmente, o grupo trabalha principalmente com inibidores da enzima pteridina reductase 1 (PTR1), que é importante para a síntese de DNA em Leishmania.
A rotina laboratorial envolve o uso de ferramentas e métodos da biologia molecular para produzir as enzimas do parasita em uma célula de bactéria, por meio de métodos de DNA recombinante. “Após a bactéria mutante produzir a enzima de interesse, é clivar a célula da bactéria para liberar a enzima que será purificada”, diz Marcelo Castilho. Com a enzima pura, os pesquisadores realizam a triagem de potenciais compostos bioativos. “O emprego de testes in vitro nessa etapa é estratégico, pois ele permite testar centenas de compostos com um custo muito baixo e com uma grande velocidade. Dessa forma, pode-se selecionar compostos promissores para testes subsequentes em modelos mais complexos”.
O grupo estabeleceu colaborações com outros pesquisadores da UFBA, de outras universidades brasileiras, como a USP de Ribeirão Preto e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e colegas de outros países, na tentativa de encontrar inibidores de PTR1. “Firmamos parcerias com grupos de pesquisa de outras universidades que trabalham no isolamento de produros naturais ou na síntese de diferentes classes químicas como estratégia para ter acesso ao compostos que testamos aqui na UFBA. Os compostos mais promissores são então modificados pelos grupos colaboradores, visando a aumentar sua potência e seletividade. Quando esse ciclo de avaliação-modificação é concluído, enviamos os compostos para ensaios em modelos animais”, Castilho detalha.
Um dos resultados mais promissores do grupo provém da colaboração com o grupo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que identificou um inibidor com esqueleto químico diferente dos inibidores já conhecidos e cuja síntese é mais simples. Essa característica é importante por facilitar modificações químicas que levem a compostos mais eficazes.
Paralelamente a essa abordagem experimental, os pesquisadores da UFBA utilizam ferramentas computacionais para selecionar virtualmente os compostos mais promissores, por meio da simulação do encaixe dos compostos no sítio de interação da enzima. “Após a seleção das moléculas mais promissoras, é possível adquirir muitas dessas moléculas para verificar in vitro se elas são de fato ativas. Essa abordagem também levou à descoberta de uma nova classe de inibidores de PTR1. Os detalhes experimentais que levaram à descoberta dessas duas classes de inibidores foram publicados recentemente no periódico European Journal of Chemistry, diz Castilho.
Outro campo muito importante também pesquisado pelo grupo é o da virulência bacteriana. Existe uma previsão de que em 25 anos os antibióticos não serão mais eficazes e voltaremos a uma época pré-antibiótica, em que até um corte em um dedo pode levar à morte. O grupo propõe-se a tratar desse problema por uma abordagem inovadora que não envolve a morte da bactéria ou o bloqueio da sua proliferação. Estudos recentes demonstram que o controle da virulência bacteriana não causa pressão evolutiva que poderia levar à seleção de cepas resistentes. Diminuindo a virulência, o próprio sistema imune seria capaz de debelar a infecção. “Essa classe terapêutica tem recebido pouca atenção da indústria farmacêutica, já que não é interessante investir milhões de dólares num antibiótico que poderia deixar de ser eficiente em poucos meses”, observa Castilho.
“Existe um meio de fazer um teste muito simples para saber se estamos inibindo o fator de virulência sem matar a bactéria. Diversos fatores de virulência são responsáveis pela coloração típica das bactérias. Nós cultivamos essas bactérias na presença dos compostos que queremos testar e observamos se há mudança na cor, mas não na taxa de proliferação. Assim, conseguimos selecionar compostos que têm a atividade desejada, mas não causam pressão evolutiva sobre a bactéria”, observa Marcelo. “Começamos trabalhando com Staphylococcus aureus, mas hoje o projeto que tem resultados mais promissores com moduladores da virulência de Pseudomonas aeruginosa. As enzimas responsáveis pelo biossíntese de piocianina, fator de virulência de P. aeruginosa, foram bastante estudadas do ponto de vista bioquímico e estrutural, mas nenhum grupo de pesquisa as havia estudado com vistas ao desenvolvimento de fármacos. Então, percebemos uma ótima oportunidade para desenvolver pesquisas nessa área”, diz Marcelo.
A equipe da Faculdade de Farmácia têm outros projetos independentes, como o desenvolvimento de compostos anti-térmicos que tenham mecanismo de ação diferente dquele dos fármacos comercializados e que poderiam ser utilizados por pessoas com doenças hemorrágicas, como a dengue.
É também pauta do grupo o desenvolvimento de fármacos contra a anemia falciforme, uma doença que afeta aproximadamente 4.200 pacientes na capital e nas cidades do interior da Bahia, segundo dados cadastrados na Fundação de Mematologia e Hemoterapia da Bahia (Hemoba). Nessa área os pesquisadores utilizaram modelos computacionais para selecionar as moléculas que poderiam reverter a falcização da hemácias. “Todos os sintomas da doença se dão pela modificação no formato da hemácia. A hemácia parece um disco bicôncavo, mas nos pacientes com anemia falciforme ela fica em formato de foice. Essa mudança atrapalha a circulação, causando dor e outros eventos tromboembólicos observados nos pacientes”.
A descoberta de que os receptores de adenosina do subtipo 2B, até então explorados como alvos para o desenvolvimento de medicamentos anti-asma, têm papel crucial na falcização levou o grupo coordenado por Marcelo Castilho a buscar moléculas inéditas que agem nesse receptor, por meio de ferramentas computacionais. “Encontramos moléculas com elevada potência, o que justificaria estudos mais aprofundados, especialmente porque esses compostos tem características ideais para serem encaminhados para ensaios em modelos animais”, explica.
O grupo de Avaliação e Planejamento de Moléculas Bioativas foi pioneiro, no estado, no uso de ferramentas computacionais para priorização de moléculas potencialmente ativas contra uma determinada enzima e um dos primeiros grupos do mundo a trabalhar com o desenvolvimento de inibidores de enzimas relacionadas a produção de piocianina. Marcelo Castilho observa que, no entanto, “os projetos de pesquisa desenvolvidos pelo grupo estão praticamente paralisados devido ao corte de verbas que a ciência sofreu”. O time de pesquisadores está usando a verba de um projeto anterior para comprar reagentes, na tentativa de manter o laboratório funcionando até meados do próximo ano.